“Quando quis criar um disco que incorporasse o sentimento brasileiro, surgiu a ideia do batuque da lata. O tamborim e o pandeiro representam o samba como cultura oficial; a lata simboliza o mesmo batuque, porém no universo desigual do Brasil. A lata é a alternativa ao caminho oficial”, declarou Fernanda Abreu, em 17 de novembro de 1995, no jornal O Globo, data em que a turnê de seu mais recente e conceitual trabalho, o álbum Da Lata, chegava ao Rio de Janeiro.
O mote em questão — a lata, este artefato extremamente útil e versátil, feito de metal pouco valioso para alguns, mas indispensável para a sobrevivência de centenas de milhares de pessoas — atravessa o nosso consciente coletivo há décadas, carimbando-o com simbolismos múltiplos, especialmente naquele que chamamos de “Brasil Real”. Há de se considerar, também, um evento amplamente conhecido, ocorrido em setembro de 1987, quando tripulantes da Solana Star atiraram ao mar parte de um carregamento de duas toneladas de maconha, oriundas da Tailândia, quando a força-tarefa da Polícia Federal se aproximou da embarcação, que navegava a cerca de 300 km da costa brasileira. Dias depois, as latas contendo a droga chegaram às praias do Rio de Janeiro, de São Paulo e de outras regiões – daí a origem do termo “da lata”, adotado por comunidades de jovens, atribuindo à gíria o sentido de algo bom, de qualidade superior, especial e até proibido.
Deliberadamente, Fernanda Abreu abordou temas sensíveis, culturais e sociais, sob outros ângulos, ressignificando ideias e situações comumente associadas à miséria, pobreza, carência, precariedade e até à falta de amor-próprio do brasileiro. Fernanda Abreu tomou para si o batuque reinventado no subúrbio e na favela carioca, promovendo seu diálogo com “samplers”, “drum machines”, “sequencers” e demais avanços da tecnologia de ponta que haviam surgido. A linha estética do projeto visual na totalidade — capa e encarte do CD, fotos de divulgação, cenário e figurino, resultado do trabalho de uma equipe formada por profissionais de renome – Luiz Stein (cenógrafo e ex-marido de Fernanda), Walter Carvalho (fotógrafo) e Claudia Kopke (figurinista) –, alinhada à sonoridade e à temática das letras, unificaram os conceitos do álbum e do show.
Em 2025, a multifacetada Fernanda Abreu reafirma-se, mais uma vez, como ótima gestora de sua obra, celebrando os trinta anos de Da Lata, álbum ambicioso e atemporal. A comemoração se materializa em diversos projetos a saber: Um Documentário dirigido por Paulo Severo, com roteiro deste e de Fernanda, com bastidores do processo criativo de Da Lata através do impressionante acervo de imagens registradas em foto e vídeo da pré-produção e gravação no Rio de Janeiro, da mixagem em Londres e das apresentações da turnê com entrevistas atuais, analisando conquistas e revelando adversidades que Fernanda teve que à época; Relançamento do álbum Da Lata em vinil; Lançamento do livro Da Lata – 30 anos, reunindo textos de colaboradores, matérias publicadas, fotos conhecidas e inéditas do projeto visual do disco, da turnê e do figurino, além de cartazes e itens da sua memorabília.