Curtas de David Lynch jogam espectador em labirinto intelectual esmagador

12.08.2020 | 17h58
Por Folhapress
David Lynch

BLOG

Mundo Itapema

Curtas estão disponíveis no YouTube

David Lynch é um artista especial. Ele costuma nos tomar pela mão, conduzir até um ponto determinado, e obscuro, e então largar nossa mão, como a dizer: daqui por diante é com você. Em seus filmes temos a sensação de que o sentido vai se entregar a nós em algum momento, daqui a pouco, mas não: ele escapa por algum desvão, engana, o que parecia um mistério se torna já outro mistério. Alguns curtas de Lynch - é possível vê-los no YouTube sob o título genérico de "David Lynch Theater"- nos jogam nesse labirinto intelectual um tanto esmagador, mas nem por isso menos fascinante (ou, por isso mesmo, fascinante).

Uma antiga entrevista pode fornecer uma pista de seus procedimentos. "Ideias são coisas maravilhosas e abstratas. Elas não existem em um lugar. Eu sei que existem, como os peixes. Acredito que se você ficar quietinho, como os peixes, você vai pegar ideias. Se você pegar uma ideia, qualquer ideia, aquilo não estava lá, e agora está." Em outra parte ele explica o que é meditação transcendental: é como donuts, cuja doçura você não pode sentir se não morder. A meditação é uma doçura muito maior e mostra a doçura da vida.

Esse último eu transcrevo de memória, mas a ideia é mais ou menos essa. De certa forma, um elogio do ócio criativo. No caso, ele compara meditar a morder um doce. Nada mais evidente. Porém nos introduz à doçura da vida. Nada mais obscuro. Que doçura existe na animação "How Was Your Day Honey?". Três quadrados amarelos se movem na imagem, diminuindo e aumentando, sobre um fundo branco onde o esboço de um homem, como que rabiscado por uma criança, entra e sai de quadro, como que flutuando docemente. Lembra um pouco o voo de Dale Cooper num dos episódios do "Twin Peaks" de 2018. Esse homem, que em nada controla seu destino, que parece até meio triturado pelo ruído que ouvimos ao fundo, responde à mesma questão todo fim de dia, pressupõe-se que ao voltar para casa.

"The Spider and the Bee" não parece ter a origem abstrata de uma ideia, mas resultar da observação da natureza. Evoca, vagamente, os escorpiões do "l'Âge d'Or", de Buñuel, ou, bem mais, a cruel cena do jacaré que devora uma ave na "História de Louisiana", de Robert Flaherty. Aqui, tudo se resume à observação neutra e tensa da luta entre a aranha e a abelha presa em sua teia. Neutra porque distante, como se o observador tivesse certo pudor em observar a cena, e tensa porque a abelha não se entrega facilmente, resiste aos ataques da aranha, contra-ataca. Parece não haver nenhuma ideia aí: apenas o que está lá, um embate mortal pela sobrevivência; a ordem da natureza mostrada em toda sua metódica crueldade. E talvez a pergunta adjacente: será essa também a ordem dos homens? Será necessariamente essa? Em que nos encontramos com a natureza, em que talvez nos distanciamos?

As observações desse "Theater" se encaixam por vezes nas descobertas cotidianas de Lynch, onde ele se propõe como sujeito e objeto de ações aparentemente sem maior transcendência. Ou certos atos prosaicos, ou quase, seriam apenas a fachada desses mistérios em que o sentido, em princípio óbvio, se adensa e se torna um mistério, parte de mistério maior? Que dizer, por exemplo, do formidável "Rabbits" - no YouTube encontram-se 15 min -, uma espécie de sitcom - com plateia, risos, aplausos incluídos -, em que três personagens fantasiados de coelhos habitam uma sala que poderia ter sido pintada por Edward Hopper e trocam diálogos que poderiam ter sido escritos por Beckett?

Como se respondesse ao nonsense do mundo replicando-o e duplicando-o, Lynch parece nos seus curtas mais dadaísta do que propriamente surrealista. Mas um dada que medita e pode ver, para além do nada, a maravilha de morder um doce. Talvez tudo isso ressurja, com plena força, em outro curta, "Wha Did Jack Do?" - este na Netflix -, onde um detetive interroga um macaquinho suspeito de matar a galinha pela qual estava apaixonado. Um quê de filme noir, sem dúvida, mas reciclado para um mundo em que o absurdo e o convencional se encontram, assim como uma máquina de costura e um guarda-chuva se encontram nos textos surrealistas.

*por Inácio Araujo

Matérias Relacionadas