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'Meu Amigo Fela' faz um esforço por vezes exagerado de posicionar o músico entre ícones da causa negra, como Malcom X e Marielle Franco
Com suas roupas chamativas, performances extravagantes e a defesa da música como instrumento da libertação negra, Fela Kuti (1938-97) é um dos personagens emblemáticos da África no século 20.
Este nigeriano desbocado, celebrado pelo gênero Afrobeat e pelo intenso engajamento político, é o tema de "Meu Amigo Fela", documentário do brasileiro Joel Zito Araújo.
O filme é construído a partir do relato do cubano Carlos Moore, biógrafo e amigo de Fela, que lembra suas experiências pessoais com o músico e agrega depoimentos de pessoas que conviveram intensamente com ele, incluindo 2 de suas 27 mulheres.
Sim, 27 mulheres. Só isso já permite situar o mito como alguém que denuncia as violações de direitos humanos dos militares nigerianos, mas não abre mão de manter uma corte submissa em sua "República de Kalakuta", a mansão em Lagos onde era o soberano indiscutível para dezenas de pessoas.
Poligamia é uma tradição africana, ele justifica em uma imagem de arquivo, e é melhor manter 27 mulheres ao redor, prontas para satisfazer sua volúpia sexual, do que ter apenas uma e traí-la a toda hora.
É ao expor esses detalhes da vida de Fela que o filme tem seu grande mérito. Nos 22 anos desde sua morte, aparentemente de Aids, criou-se uma imagem em torno da figura do nigeriano comparável à de heróis da independência africana, que tinham muito de falíveis.
Há no filme um esforço por vezes exagerado de posicionar o músico entre ícones da causa negra, como o americano Malcom X, o congolês Patrice Lumumba e, num rápido aceno à atual conjuntura, a vereadora Marielle Franco.
Melhor se sai o documentário quando dá amplo espaço às músicas de Fela, com a ideia providencial de legendá-las, dado que o nigeriano usava uma variação do inglês falado no país que é muitas vezes incompreensível ao ouvido destreinado.
Ricas imagens de arquivo reconstroem momentos chave da vida dele, como as sucessivas investidas que sofreu da ditadura nigeriana, insatisfeita com suas letras ridicularizando o regime. Num desses ataques, em 1977, a mãe do músico, uma pioneira do feminismo na África, acabou sendo morta.
Igualmente relevante no filme é o destaque aos últimos anos da vida do músico, em que sua excentricidade, regada a um misticismo que mesclava gurus indianos e a influência da religião iorubá, beirou a loucura.
Os arroubos autoritários, que afastaram parte dos amigos, o declínio musical e até uma folclórica tentativa de disputar a Presidência da Nigéria mitigaram algo da idolatria a Fela Kuti nas décadas de 1980 e 1990, mas não evitaram que uma multidão se comovesse com sua morte e fizesse uma vigília nas ruas de Lagos.
De uma certa forma, esse fase final também compõe a imagem de um artista influente e ser humano inconformado, resumida na frase que fecha o documentário: "Eu não vou ceder".