Martin Scorsese volta à máfia na superprodução "O Irlandês"

15.10.2019 | 22h15 - Atualizada em: 15.10.2019 | 22h14
Anna Rios
Por Anna Rios
Martin Scorsese volta à máfia na superprodução "O Irlandês"

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Mundo Itapema

Superprodução chega à Netflix em novembro, após estreia limitada nas salas de cinema

Por GaúchaZH

O plano-sequência atravessa corredores. Levado pela câmera subjetiva, o espectador percorre diferentes ambientes, embalado por uma canção do passado. Pode ter saltado na memória dos fãs de Martin Scorsese o célebre "Copa shot", a sequência de "Os Bons Companheiros" em que Henry Hill, personagem de Ray Liotta, conduz a namorada, Karen, vivida por Lorraine Bracco, pelas entranhas do clube Copacabana, em Nova York.

Aqui, contudo, o cenário passa longe do aspecto glamoroso do submundo que seduziu Hill, explorando as íntimas relações da Máfia com a vida política americana. Vemos cabelos brancos e enfermeiros. Estamos num asilo, e a câmera repousa em Robert De Niro, como Frank Sheeran, que, da sua cadeira de rodas, rememora, em flashbacks dentro de flashbacks, o seu passado a serviço da Cosa Nostra.

"O Irlandês" fez sua estreia no Festival de Nova York, em setembro, e foi aclamado pela crítica como obra-prima.

Estão no longa aspectos que fazem com que o espectador reconheça rápida e confortavelmente estar em território de Scorsese - o ritmo preciso, a narração, o humor que vem distender a violência. A violência, essa, é tratada de forma seca - Sheeran, veremos, é um matador preciso, e sua contenção não está só no gestual econômico de De Niro. O retrato dos crimes não cai no excesso, nem de sanguinolência, nem de estetização. De Niro, como personagem-título, contracena com Al Pacino no papel de Jimmy Hoffa, líder sindical - assim descreve o filme - tão famoso quanto Elvis nos anos 1950 e mais que os Beatles nos anos 1960. O cerne do elenco se completa com Joe Pesci, num retorno às telas após a aposentadoria autoimposta em 2006. Ele é Russell Bufalino, "capo" da Máfia de Pensilvânia que contrata Sheeran - apelidado de Irlandês por suas origens - e o apresenta a Hoffa.

"Ouvi dizer que você pinta casas", diz Hoffa a Sheeran em sua primeira conversa, ao telefone. A frase - em inglês, "I heard you paint houses" -, um eufemismo para "cometer assassinatos", é a chave para que suas vidas se entreteçam. A trama trata de lealdade - e de matar para não morrer. A expressão é também o título das memórias de Sheeran contadas por Charles Brandt e publicadas em 2004, ano seguinte à morte do Irlandês, aos 83. No livro, Sheeran diz ter assassinado Hoffa. O desaparecimento sem rastros do líder, em 1975, gerara muita especulação, mas nenhuma explicação plausível até então. A adaptação é uma saga não só pelo arco temporal que cobre - um período de mais de 30 anos, narrado a partir de um epílogo distante outros 20 dos fatos - mas pelo que significou como produção.

O projeto foi acalentado por uma década por Scorsese, ao longo da qual o orçamento foi subindo. Até que a Paramount, produtora original do filme, desistiu e o passou para as mãos da Netflix em 2017. Terminou custando estimados US$ 175 milhões, grande parte dos quais consumidos em recursos de rejuvenescimento digital que permitiram que os protagonistas fossem vividos pelos mesmos atores ao longo de toda a história. Havia muita expectativa sobre o que o aparato da Industrial Light & Magic de George Lucas seria capaz de fazer. Não espere De Niro, 76, como em "Taxi Driver", também dirigido por Scorsese, em 1976; ou Pacino, 79, como o charmoso Michael Corleone em 1974, no "Poderoso Chefão 2", de Francis Ford Coppola.

O efeito final é até mais interessante do que uma plástica perfeita; notamos por trás da pele lisa os traços e gestos de quem já viveu muito - como talvez se recorda alguém que, velho, repassa toda sua vida.

"Como ator eu brinco que isso vai estender minha carreira por mais uns 20, 30 anos", diz De Niro. É um dos poucos momentos em que se descontrai na entrevista concedida a sete jornalistas latino-americanos, incluindo esta repórter, reunidos em Nova York. "De certo modo eles podem seguir em frente sem a gente... Mas conosco", ri Pacino, acrescentando que pode ser um problema "para os herdeiros", como já encetara De Niro, considerando que a tecnologia vai se aprimorar. "Quem sabe aonde isso nos levará em 20 anos? Se podemos chegar a qualquer ponto, em termos tecnológicos, como lidar, como proteger os direitos [dos atores]?"

Ali, ao receberem a imprensa, os companheiros parecem continuar nos personagens.

De Niro aperta os lábios, falando pouco, às vezes assentindo calado, como Sheeran; Pacino, histriônico, solta a voz rouca em alto volume, como seu Hoffa, um excêntrico manda-chuva comedor de sorvete e sem papas na língua. Suas atuações, e a de Pesci, 76, foram reconhecidas como magistrais, o que certamente contribui para que as três horas e meia do filme não tenham um minuto maçante. É legítimo pensar que, para um time experiente, possa ter algum impacto saber que seu trabalho não vai ser prioritariamente visto nos cinemas.

"O Irlandês" terá uma estreia limitada em salas - no Brasil, a data é 14 de novembro - antes de ser exibido mundialmente pela Netflix, a partir de 27 do mesmo mês. "Acho que você não está pensando em como vai ser apresentado, você parte do princípio de que é um filme", pondera Pacino, para depois dizer que "queria pedir à Netflix que tentasse contentar as pessoas que vão ao cinema".

Hesitando, diz que gosta de Netflix, que assiste, mas que, como ouviu "de um diretor de cinema muito conhecido", o público hoje picota o que assiste no streaming. "É difícil, quando se pensa nos filmes que saíam em 35 mm, significava tanto para como o filme era absorvido ser em 35 mm e ser visto continuamente", diz.

"É uma experiência artística diferente se você sabe que vai sentar num cinema e assistir ou se você sabe que vai parar, atender ao telefone...". "Este filme foi feito para o cinema tradicional, que é algo da nossa geração", completa De Niro, coprodutor do longa. "Quando se tem uma experiência coletiva no cinema, todo mundo sabe, é diferente", continua. "Não gosto de ver um filme que fiz, a não ser com público. Você sente como as pessoas estão atentas. Pessoalmente, eu gosto disso."

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