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Disputa com a gravadora EMI ganhou novos contornos após a morte do artista
Por GaúchaZH
Os três primeiros discos de João Gilberto estão fora de circulação. Considerados a essência da bossa nova, Chega de Saudade (1959), O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961) foram lançados pela Odeon, subsidiária da EMI que foi extinta nos anos 1990 e cujo acervo faz parte da Universal desde 2012, quando as empresas se fundiram.
Em 1964, quando João e a gravadora não renovaram contrato, a EMI continuou a lançar diferentes edições dos discos, fazendo pagamentos considerados injustos pelo artista.
Mas a relação chegou a um ponto insustentável em 1988, quando os três primeiros LPs de João Gilberto - além do compacto João Gilberto Cantando as Músicas do Filme Orfeu do Carnaval, de 1959 - saíram remasterizados e remixados, sem autorização do autor, na coletânea O Mito.
A compilação saiu no Brasil e no exterior com 38 faixas em um CD e três LPs. As mudanças de equalização, adição de efeitos e o condensamento de canções foi o que levou João a entrar na Justiça contra a gravadora. Ele cobrava os royalties das vendas desde 1964 e também os danos morais.
Em 2015, o Superior Tribunal de Justiça deu ganho de causa a João. Agora, a briga gira em torno do tamanho da vitória do músico.
Uma primeira perícia, feita em 2015, determinou que o valor devido pela Universal era de R$ 173 milhões (ou R$ 219 milhões atualizados). A gravadora, porém, pediu um novo estudo, que saiu no mês passado e reduziu a indenização a R$ 13,5 milhões - menos de 8% do valor inicial.
O advogado Michel Asseff foi à polícia alegando ter havido falso testemunho na segunda perícia. Ele diz ter achado indícios de que o perito apontado pela Justiça foi parcial porque teria copiado um relatório fornecido pela própria gravadora Universal.
— Cabe agora à polícia apurar — diz ele.
Outro problema do novo documento, diz Asseff, é que ele ignora qualquer venda de discos de João Gilberto no período entre 1964 e 1974. Entretanto, em 1965, Stan Getz e João Gilberto ganharam o Grammy de melhor disco do ano por Getz/Gilberto.
— Não é possível que ele não tenha vendido nada nessa época, certo? — pergunta.
Seja qual for a indenização, o banco Opportunity ainda teria direito a metade dela, uma vez que, em 2013, fez um contrato de risco com João Gilberto, no qual pagou R$ 10 milhões por metade do que o artista viria a receber da gravadora, caso ganhasse.
Hoje a disputa financeira tem a ver com uma discussão sobre o tamanho do artista em termos de mercado. A perícia mais recente é baseada nos relatórios e nas notas fiscais apresentadas pela EMI (Universal), que concluem um total de 443 mil discos vendidos de 1964 até hoje. Para os representantes dele, o número passa de 5 milhões. A situação é muito complexa.
Enquanto a perícia soma as vendas de uma lista de 21 álbuns, contando todos os formatos, há dezenas de discos diferentes feitos no mundo com as faixas da fase da EMI. É o caso do volume de João da série I Maestri, lançado em 1973, na Itália, pela Odeon. Ou de Gilberto & Jobim, lançado em 1964 nos Estados Unidos pela Capitol Records.
Basta uma simples busca por sites de colecionadores como o Discogs - com quase 500 mil usuários - para se deparar com centenas de produtos feitos a partir dos fonogramas que pertenciam à gravadora. A lista inclui singles, EPs, álbuns inteiros, compilações e coletâneas sobre bossa nova ou música brasileira com músicas de João Gilberto.
Lançamentos internacionais adaptados para mercados locais eram comuns, mas a quantidade de produtos derivados de João Gilberto sugere uma discrepância com o relatório da Universal. De acordo com a perícia, baseada na lista da gravadora, por exemplo, só o disco Chega de Saudade teria vendido pouco mais de 21 mil cópias desde 1964.
Mesmo que a quantidade seja exatamente essa, as músicas da obra chegaram ao mercado em outras encarnações. Independentemente da validade desses "filhos perdidos" de João, é pouco provável que a relevância fonográfica do pai da bossa nova se limite a menos de meio milhão de discos vendidos em cinco décadas e meia.
Os cálculos do jornalista Ruy Castro para o livro Chega de Saudade também colidem com os da perícia. Para ele, é razoável considerar que João tenha vendido mais de 5 milhões de discos ao redor do mundo nesse período.
Sem autorização para relançamento digital, os discos da fase Odeon/EMI de João seguem oficialmente fora de circulação. Mas isso só na teoria.
Basta uma simples busca para encontrar Chega de Saudade - em sua gravação original - no Spotify. Também é possível ouvir Desafinado, Rosa Morena, Samba da Minha Terra e outros clássicos em compilações como Ho-ba-la-la, lançada em 2017 pelo selo VK Mastersound. Ou Corcovado, que saiu em 2016 atribuído à Goldstar Records.
Esses dois discos, por exemplo, são assinados por João Gilberto Quintet, mas, essencialmente, contam com as mesmas gravações dos três primeiros álbuns do cantor. Do mesmo jeito, por mais raras que sejam as edições originais do álbum Chega de Saudade, não é tão difícil encontrar em um sebo outro disco com as gravações originais ou com as versões remixadas dos anos 1980 daquele LP.
A existência desses filhotes perdidos de João Gilberto não comprova que a EMI - e, agora, a Universal, que não respondeu aos pedidos para comentar esta reportagem - tenha lucrado ou esteja lucrando com os produtos. Nem se a gravadora autorizou as reedições desses álbuns. Por outro lado, são o maior exemplo da desorganização na distribuição da obra de João Gilberto ao redor do mundo.
Para além da questão judicial, é quase impossível calcular a relevância em termos de mercado de um dos nossos artistas mais importantes.
Entre processo por danos morais e tentativa de reconhecimento de união estável, filhos e ex-companheira disputam direitos autorais do artista.
"E quem quer todas as notas/ Ré, mi, fá, sol, lá, si, dó/ Fica sempre sem nenhuma", já dizia um dos clássicos de Tom Jobim que João Gilberto mais gostava de tocar, Samba de Uma Nota Só. Só que não é a nota musical, mas a de dinheiro, que dá o tom da disputa familiar que sucedeu a morte, há um mês, do criador da bossa nova.
Os protagonistas deste samba são os irmãos João Marcelo, 58 anos, Bebel Gilberto, 53, e Luisa Carolina, 15 (a caçula representada pela mãe, Cláudia Faissol), mais Maria do Céu, caso de longa data com quem o músico morava em seus anos finais. E eles estão se engalfinhando numa luta pelo espólio de João.
Em termos de bens, até agora é tudo bem esquálido. Não há imóveis legados, por exemplo, embora uma ou outra peça tenha seu valor histórico-financeiro, como violões dedilhados pelo baiano.
Mas há os direitos autorais que João recebia periodicamente, estimados entre R$ 12 mil e R$ 30 mil ao mês, fora uma indenização milionária que a EMI deve ao artista, ainda alvo de impasse judicial. Este é, aliás, o único ponto que une os herdeiros - todos concordam que o pai foi lesado pela gravadora.
Outra cizânia, esta não mensurável monetariamente, é pelo afeto a João Gilberto. Seus filhos e amores passados vivem duelando para saber quem mais amou e quem mais falhou com o músico.
No ano passado, o cliente mais fiel do Degrau deixou de encomendar o filé que tanto gostava do restaurante. Uma ação de despejo levou João a sair de seu apartamento na rua Carlos Góis, no Leblon.
O episódio fez o sinal amarelo acender entre amigos, que fizeram vaquinha para pagar aluguéis e condomínios e reformar o lar de João na zona sul carioca, onde nem a água funcionava direito. Nisso, o casal Caetano Veloso e Paula Lavigne cedeu um imóvel para o músico morar na Gávea, e outro em Ipanema para Maria do Céu, a ex-namorada que residia com ele.
João voltou para a rua Carlos Góis em novembro de 2018 - dívidas de R$ 270 mil, referentes ao imóvel, foram acertadas em fevereiro deste ano. Morreu no dia 6 de julho deste ano. A certidão de óbito de João Gilberto Pereira de Oliveira, 88 anos, não precisa o momento de sua morte ("hora ignorada"), mas atribui cinco causas - edema pulmonar, infarto agudo do miocárdio, obstrução intestinal, hérnia inguino-escrotal e, mais genericamente, doença.
A morte de Miúcha, sua segunda mulher e mãe de Bebel, em dezembro, o abalou. Meses depois foi a vez da irmã mais velha, Dadainha. No final de junho, morreu ainda a gata preta e branca de João.
A briga no seio familiar colaborou para seu declínio físico.
— Inicialmente, João Marcelo, Bebel Gilberto e Maria do Céu cogitaram em conjunto a possibilidade de interdição do artista — diz Gustavo Miranda, da equipe de advogados do primogênito.
Só que, com João Marcelo morando nos Estados Unidos, Bebel teria dado prosseguimento sozinha. Em novembro de 2017, a Justiça declarou João incapaz e deu à filha do meio a guarda jurídica. A partir daí, o irmão mais velho passou a acusar Bebel de querer roubar o pai e de o manter como prisioneiro.
A cantora pleiteia agora o papel de inventariante do espólio paterno. Nem ela nem sua advogada quiseram falar com repórteres, mas amigos dizem que João Marcelo tem recalque da irmã por dois motivos - ela conseguiu sucesso musical e o pai dos dois largou a mãe dele para ficar com a dela, décadas atrás.
No quiproquó, sobrou para Luisa Carolina, vítima de alienação parental, segundo Leonardo Amarante, advogado de Cláudia Faissol, que em 2004 deu a filha temporã a João (hoje, a adolescente mora com uma tia). Mesmo sendo menor de idade, ela já não recebia pensão do pai, atolado em perrengues financeiros.
— Luisa não pôde ver o pai por um ano. Poucos dias antes, foi o aniversário de 15 anos dela. Eles eram muito próximos antes de começar isso tudo — afirma Amarante.
Maria do Céu seria a responsável pelo afastamento. Ela afirma que João sempre pagou suas contas no Brasil e que a recebeu em casa quando, endividado, ele deixou de pagar o aluguel da casa dela, em 2017. O valor devido, de R$ 76 mil, foi retirado das contas de João Gilberto em abril deste ano, por meio de penhora judicial.
O advogado Roberto Algranti Filho, que a representa, diz que João morreu nos braços de sua cliente e conviveu com ela desde que se conheceram, em 1984, em Lisboa.
— Devido ao fato dos filhos de João estarem negando a relação havida entre o casal, Maria do Céu irá propor uma ação judicial, com o objetivo de declarar, por sentença, o fato público e notório de sua união estável com o artista.
Além disso, diz, Maria vai recorrer de um julgamento que não respeitou um testamento que João fez em 2003, deixando um terço de seus bens a ela. O que ocorre é que, um ano depois, nasceu uma nova herdeira, Luisa Carolina, o que invalidaria o documento.
Para complicar, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo na semana passada, João Marcelo pôs em dúvida a paternidade da irmã mais nova, dizendo que "Lulu até hoje não se representou com um teste genético para provar que é filha dele".
Agora, Faissol promete processar o produtor por danos morais. Bebel já o processa também por danos morais.
Alheia, Maria do Céu segue com sua expectativa. Seu advogado quer ganhar a ação baseado num precedente que diz que, se um testamento reserva ao menos 50% para seus filhos, ele não poderia ser invalidado. No caso, dois terços estariam reservados aos filhos.
Mas a juíza do caso diz que não há elementos suficientes para reconhecer união estável. Ainda cabe recurso.
Em 25 de julho, os advogados de Maria do Céu enviaram à 1ª Vara de Órfãos e Sucessões do Rio, onde as questões sobre a herança estão sendo resolvidas, uma amostra da intimidade dos dois nos últimos meses de vida do músico. Ela está "em posse de diversas correspondências" que chegaram à "residência do casal", na qual "permanece morando". As cartas se referem a direitos autorais do baiano.
— O patrimônio dos direitos é amazônico, nos Estados Unidos, Europa e Japão, mas tem que ser reivindicado — diz Amarante, representante de Faissol, nêmesis de Maria do Céu.
Agora é esperar pelo próximo acorde desse samba de uma nota só.
João faz um testamento deixando um terço de seus bens a Maria do Céu
Nasce Luisa Carolina, da relação com Cláudia Faissol
Perícia aponta em R$ 173 milhões a indenização (R$ 219 milhões atualizados) devida pela gravadora EMI
Bebel obtém a curatela de João Gilberto
João Marcelo questiona a interdição e acusa a irmã de roubar o pai
Outra perícia diz que a indenização deve ser de R$ 13,5 milhões
Morre João, aos 88 anos. Bebel pede para se tornar inventariante; Maria do Céu tenta firmar união estável com o artista; João Marcelo põe em dúvida a paternidade de Luisa; Faissol promete processá-lo.