"Os Testamentos" de Margaret Atwood ganha lançamento no Brasil em meio à popularidade de distopias

13.11.2019 | 22h10 - Atualizada em: 14.11.2019 | 13h35
Anna Rios
Por Anna Rios
Cena da premiada série norte-americana "The Handmaid's Tale", inspirada em "O Conto da Aia"

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Presença de livros sobre futuros desoladores em listas de best-sellers é descrita por especialistas e editores como sintoma de vontade do público de entender turbulência política

Há 30 anos, o mundo assistia à queda do Muro de Berlim. Parece apropriado que na mesma data, em 9 de novembro, tenha chegado às livrarias brasileiras Os Testamentos (Rocco, 448 páginas), continuação de O Conto da Aia, obra mais conhecida da escritora canadense Margaret Atwood. Se na primeira parte da história o regime totalitário de Gilead parecia tão forte quanto a União Soviética em seus anos de glória, aqui há um relato da corrosão interna da nação, que pode resultar em uma implosão tão simbólica quanto os acontecimentos na Alemanha em 1989.

Ao menos é a esperança das personagens que narram Os Testamentos. Como o título sugere, a obra combina os relatos de testemunhas para compreender o futuro descrito por Margaret Atwood em 1985, quando a escritora apresentou pela primeira vez a história da aia Offred no país fictício de Gilead, que teria emergido em parte dos Estados Unidos após uma seita de religiosos chegar ao poder. Inspirados em passagens bíblicas, eles reestruturam a sociedade de forma que as mulheres passam a ser tratadas como patrimônio do Estado teocrático, principalmente aquelas que podem ter filhos — escolhidas como aias, para perpetuar as famílias dos Comandantes.

Uma das obras premiadas em outubro com o Man Booker Prize 2019, no Reino Unido,
Os Testamentos é construído a partir de três pontos de vista: de uma menina criada no Canadá, que olha para o país vizinho com assombro; de outra garota que cresceu em Gilead e é capaz de ver beleza no regime; e a temida Tia Lydia — vista até aqui como uma das grandes vilãs da autora por ser uma mulher que ajuda a subjugar outras mulheres. Segundo a escritora, a história surgiu para responder a questão deixada por O Conto da Aia: como um regime totalitário chega ao fim?

“Trinta e cinco anos é um longo tempo para pensar em respostas possíveis, e elas têm mudado à medida que a própria sociedade mudou, e possibilidades se tornaram realidade”, escreve Margaret Atwood. “Totalitarismo pode ruir de dentro para fora, ao passo que o regime não consegue manter as promessas que o levaram ao poder; ou pode ser atacado de fora para dentro; ou os dois. Não existem fórmulas seguras, pois muito pouco na história é inevitável”.

A escritora canadense Margaret Atwood, autora de "O Conto da Aia" e "Os Testamentos"Foto: Divulgação

Best-seller

Às vésperas de seu aniversário de 80 anos, a escritora se mantém há 95 semanas na lista dos 10 livros mais vendidos do Brasil com O Conto da Aia, de acordo com a revista Veja. São quase dois anos, data que corresponde ao relançamento da obra pela Rocco, em junho de 2017. Se parte do sucesso pode estar relacionada à popularidade da adaptação televisiva The Handmaid’s Tale (considerada canônica por Atwood), existem outros fatores capazes de explicar o súbito interesse pelo romance. Para o editor da Rocco Tiago Lira, o contexto político tem sua parcela de responsabilidade:

— Essa redescoberta tem tudo a ver com a onda conservadora e autoritária que cresce no mundo todo. Quando uma distopia escrita há quase 35 anos parece se aproximar cada vez mais da realidade, maior o interesse pela obra.

O ressurgimento de O Conto da Aia, no entanto, não é uma exceção, mas parte de um cenário maior. O segundo livro recorrente na lista de mais vendidos em ficção, há 71 semanas, é A Revolução dos Bichos, uma crítica ao stalinismo soviético publicada por George Orwell em 1945. Outros sucessos de épocas passadas incluem ainda 1984, também de Orwell, de 1949, entre os 10 mais vendidos; além de Fahrenheit 451, lançado por Ray Bradbury em 1953, e Admirável Mundo Novo, publicado em 1932 por Aldous Huxley, ambos entre os 20 primeiros.

Em comum nestas histórias, visões pessimistas sobre o futuro, em que as liberdades são cerceadas, governos autoritários ascendem ao poder e a tecnologia é apenas  uma ferramenta para sufocar ou manipular a população. São as distopias, nomeadas em oposição à perfeita Utopia, descrita por Thomas More, em 1516.

Doutora em teoria da literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e pesquisadora na área de distopias, Caroline Becker vê o movimento como natural:

— Não à toa 1984 passou a ser um dos livros mais vendidos após a eleição de Trump. E não à toa a descrição das roupas das aias se tornou um ícone em protestos relacionados a discussões sobre o cerceamento da liberdade feminina. É a arte ultrapassando seu espaço “livro”, aquele mundo ficcional, e invadindo a realidade. O que eu acredito seja um dos sentidos, um dos objetivos, da construção ficcional distópica.

Ela complementa, contudo, em sintonia com as palavras de Atwood, que, apesar da trama pessimista, tais narrativas sempre apresentam movimentos de resistência aos regimes, sendo a esperança um dos principais ingredientes:

— A gente lê distopias e assiste a distopias muitas vezes porque existe um signo utópico nessas narrativas e existe a possibilidade de subversão.

Clássicos

Antes mesmo do fenômeno de O Conto da Aia, a Globo Livros já percebia um aumento na procura por distopias. As vendas de Fahrenheit 451 aumentaram sete vezes desde 2015 e triplicaram no caso de Admirável Mundo Novo, ambos os títulos publicados pelo selo Biblioteca Azul da Globo. Lucas Lima, editor da casa, defende o espaço dessas obras no panteão da literatura:

"Fahrenheit 451" (1966): Oskar Werner e Julie Christie na clássica adaptação de François TruffautFoto; divulgação

— Em perspectiva de mercado, esses livros são chamados de long-sellers, ou cauda-longa, produtos com bom desempenho a longo-prazo, cujo interesse se renova a cada geração de leitores que os redescobre. Isto acontece porque certamente ainda têm algo a nos dizer, que é justamente uma das definições que Italo Calvino dava a um livro clássico. São clássicos da literatura universal, e isto explica sua permanência.

Para além desse aspecto, contudo, Lima ressalta que a conjuntura política atual atrai leitores a tais narrativas, uma vez que elas tratam de temas com ressonância na realidade. Enquanto Bradbury cria uma metáfora para falar da censura, ao representar um mundo onde os livros devem ser queimados, Huxley aborda a vida em uma sociedade extremamente totalitária, em que não há possibilidade de divergência. 

— O que explica sua urgência e o renovado interesse é justamente a capacidade de dialogar com um momento que parece confirmar algumas hipóteses, as mais pessimistas, que essas distopias levantam — completa Lima.

Tendência

A ascensão das distopias ainda coincide com um momento favorável à ficção científica, por anos relegada ao segundo escalão da literatura. Graças ao sucesso comercial de adaptações televisivas e cinematográficas — de Jogos Vorazes, protagonizado por Jennifer Lawrence, a Handmaid’s Tale, do Hulu — o gênero se tornou tendência no mundo do entretenimento. 

Jennifer Lawrence protagonizou a franquia cinematográfica de "Jogos Vorazes"Foto: divulgação

— Especialmente a questão das séries de televisão acaba impulsionando um grande público, filiando um público a assistir coisas. O que tornou uma expressão como "Isso é muito Black Mirror" recorrente para explicar nosso cotidiano — afirma a pesquisadora Caroline Becker.

Mesmo dentro do mercado brasileiro este cenário pode ser verificado, destaca Lucas Lima, da editora Globo:

— O gênero ainda está em alta, se você considera que uma produção nacional como Bacurau, situada entre o horror e a distopia, já levou mais de meio milhão de pessoas ao cinema.

O publisher da Aleph Daniel Lameira explica a decisão da editora de privilegiar este gênero literário desde a concepção do selo em 1984:

— Mais do que uma visão de que a distopia iria ser uma tendência, acho que o que a gente teve na Aleph foi um entendimento de que a ficção científica, como um todo, e a distopia, como parte dela, é uma forma profunda e necessária pra gente pensar nosso presente e nossa realidade.

O catálogo da Aleph aposta em clássicos sci-fi, com títulos distópicos como Nós, de Yevgeny Zamyatin, Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, e Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?, escrito por Philip K. Dick, que serviu de inspiração para o filme Blade Runner. Rebatendo as críticas de que tais obras seriam “escapistas”, Lameira evoca o discurso da consagrada escritora Ursula K. Le Guin (1929-2018) ao conquistar o National Book Awards, em 2014:  

— Ursula Le Guin usa uma frase que é muito bonita, que fala que escritores de ficção especulativa são "realistas de uma realidade maior". E acho que agora, com o momento que a gente tá passando no mundo inteiro, político e humano, é difícil achar palavras, achar histórias para representar isso. Essa arte especulativa vem pra ajudar a gente a entender o que está acontecendo com a humanidade.

Dentro desse panorama editorial — da cor de um canal de televisão fora do ar, para parafrasear William Gibson em Neuromancer — os leitores ainda foram brindados com outros títulos, nos últimos dias, além de Os TestamentosMetrópolis, de Thea von Harbou, que inspirou o clássico do cinema homônimo de Fritz Lang, chegou às livrarias no final de outubro, pela editora Aleph. Enquanto isso, a editora Verus lançou em 9 de novembro o segundo volume da trilogia distópica Entre a Luz e a Escuridão, de Ana Beatriz Brandão, voltado ao público juvenil.

Por GaúchaZH *Produzida por Bibiana Davila

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