Vinil mais raro do Brasil e primeiro de Zé Ramalho, 'Paêbirú' é relançado

17.07.2019 | 11h15 - Atualizada em: 17.07.2019 | 12h53
Anna Rios
Por Anna Rios
João Pacheco, colecionador de discos de vinil, que possui o raro 'Paêbirú'

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História do LP inclui enchente em gravadora, lenda indígena, Alceu Valença tocando pente e psicodelia artesanal

Por GaúchaZH

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Ainda bem que os discos ficaram, roubaram só a capa autografada. O das minhas tias também levaram", conta Thelma Ramalho, falando de "Paêbirú", primeira obra assinada por seu primo mais famoso, Zé Ramalho, em parceria com Lula Côrtes.

Uma parte dos 300 vinis do disco de 1975 ficou encalhada na casa de Thelma. Na época, não havia interesse. "Imagina se a gente pudesse prever o futuro?" Hoje, uma cópia original de "Paêbirú" -o mais raro LP do Brasil- pode valer mais de R$ 10 mil, mais até que "Louco Por Você" (1961), disco renegado por Roberto Carlos.

Culminando com o interesse crescente em torno de "Paêbirú", o álbum finalmente ganhou um relançamento oficial. Depois de uma reedição não autorizada feita pelo selo inglês Mr Bongo, a Polysom agora recria o LP a partir das fitas originais. A nova versão de "Paêbirú" tem como diferencial a participação de Helio Rozenblit, produtor e técnico de som do original.

"Foi uma viagem ao passado", ele conta. "Lula 'tocou' um gerador de sinal; Alceu Valença 'tirou um som' com um pente e celofane arrancado da embalagem de cigarro."

A Rozenblit, fundada pelo pai de Helio, José, era a única fábrica de discos fora do eixo Rio-São Paulo. O selo criado em Recife, nos anos 1950, se estabeleceu apostando na música regional, em especial o frevo. Nos anos 1970, já vivia a decadência. Sem ambições comerciais, "Paêbirú" ganhou apenas 1.300 cópias, mas cerca de 1.000 delas se perderam em uma enchente.

"Toda a primeira tiragem do 'Paêbirú', com exceção de amostras entregues aos artistas, foram inutilizadas, juntamente com as madres e matrizes", lembra Helio. "As fitas foram salvas da água por estarem no alto das estantes de aço do nosso arquivo."

Lula Côrtes morreu em 2011 e Zé Ramalho não fala sobre o álbum. O que se diz é que o paraibano não teria gostado de ter ficado na parte traseira do LP, enquanto Lula estampou a capa. Para Thelma, isso é bobagem: "Inventaram muitas histórias sobre esse disco". Bastos acredita em um certo rancor de Zé Ramalho. "Um pensamento de 'se na época ninguém deu moral, por que agora vão querer saber disso?'."

Com distribuição tão limitada, "Paêbirú" estava fadado ao esquecimento. O interesse pelo disco cresceu -no Brasil, mas principalmente no exterior- junto a um redescobrimento da psicodelia nordestina (ou "udrigrudi"). A cena recifense do começo dos anos 1970, da qual Lula Côrtes era uma espécie de guru, reunia artistas como Ave Sangria, Marconi Notaro e Flaviola e O Bando do Sol.

Leo Kartez, colecionador russo que se tornou um aficionado pelo "udigrudi", chegou a traduzir todo o encarte de "Paêbirú" (seu LP favorito em 30 anos colecionando).  Se tivesse que vender seu "Paêbirú" original, diz ele, cobraria entre R$ 8 e R$ 12 mil. "Mas não gosto de conversar de dinheiro quando o assunto é 'Paêbirú'. Prefiro falar sobre arte", diz.

Nos próximos anos, os 300 LPs originais da obra devem ficar ainda mais caros e raros. Mas, para além do fetiche pela raridade, dos relançamentos e publicações piratas do álbum na internet, têm aumentado as discussões sobre o conteúdo do disco em si. Dividido em quatro partes -equivalentes conceituais aos elementos terra, ar, fogo e água-, o álbum é baseado nas viagens que Zé e Lula fizeram até a Pedra do Ingá, monumento arqueológico na Paraíba. O terreno rochoso, com desenhos e inscrições rupestres em sua superfície, é a base de diversas lendas locais.

Segundo Cristiano Bastos, autor da reportagem "Agreste Psicodélico" e do documentário "Nas Paredes da Pedra Encantada", sobre "Paêbirú", as explorações da dupla apontavam para uma entidade mitológica chamada Sumé, que teria transmitido conhecimentos aos índios antes da chegada dos colonizadores. "Eles fizeram estudos, interpretações da cultura dos índios e dos negros locais", ele diz.

Com uma assustadora variedade sonora -não só de tambores, sopros e cordas, mas de cantos de pássaros e barulho de água corrente, por exemplo-, o álbum é dotado de uma psicodelia orgânica e artesanal. Para Bastos, esta é a razão de uma raridade artística, não apenas física, do álbum. "Tem um som que muita gente achava ser eletrônico, mas era um pedaço de alguma folha. Lula tocava com dente de tubarão", conta o jornalista. "É um tipo de psicodelia que ninguém mais consegue ouvir, em nenhum lugar. E ninguém vai emular esse tipo de música, porque ela é indígena, é brasileira."

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